“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

sábado, 22 de outubro de 2016

A desumanização - Valter Hugo Mãe


A história de A desumanização se passa na Islândia e só isso já é motivo para que Valter Hugo Mãe brinque com toda uma série de nomes que rolam sobre a língua como pequenos objetos carregados na boca: Gudlaug, Halldora, Sigridur, Einar, Steindór, Thurid, Hilmar, Gudmundur... Diz: “O nome do meu filho como almofada onde eu pousava a língua, a linguagem, o pensamento, o sonho todo. Nunca haveria de o engolir”. Porque no livro a fala não aponta para nada, mas é, em si, alguma coisa, um alguém, personagem que se liberta: “Nada do que possamos dizer alude ao que no mundo é. Com trinta e duas letras num alfabeto não criamos mais do que objetos equivalentes entre si, todos irmanados na sua ilusão. As letras da palavra cavalo não galopam, nem as do fogo bruxuleiam. E que importa como se diz cavalo ou fogo se não se autonomizam do abecedário. Nenhuma pedra se entende por caracteres. As pedras são entidades absolutamente autônomas às expressões. As pedras recusam a linguagem. Para a linguagem as pedras reclamam o direito de não existir. Se as nomeamos não estamos senão a enganarmo-nos voluntariamente. Às pedras nunca enganaremos. Elas sabem que existem por outros motivos e talvez suspeitem que o nosso desejo de falar seja só um modo menos desenvolvido de encarar a evidência de existir”.

Sempre que se fala em Valter Hugo Mãe surgem associações entre a sua escrita e a de Saramago. É uma alusão que me parece pertinente, mas nas últimas semanas encadeei uma série de leituras de livros seus e, a todo momento, mais e mais, eu sentia algo de Raduan Nassar nos textos, e principalmente em relação a isso que é muito presente em A desumanização: uma espécie de natureza tátil da linguagem, uma palavra que parece ter forma e dureza no espaço, fazendo com que a poesia da história se erga da página como música. “Dizia que o engenho não se descasava da emoção. Como se Bach não chorasse com o magnífico da sua obra. Bach chorava, gritava ela como doida, Bach chorava. As cores não se inventaram pelas luzes francesas e não serviam para reduções científicas. São relações antigas. Elas servem para grandes aumentos interiores. Intensificações. Modos de virmos cá fora. Só assim se porá fim a uma humanidade de sensibilidade daltônica”.

E é assim, me parece, que a palavra luta contra a desumanização, contra a ameaça perene de um universo de “gente sem gente dentro”: muito mais do que pelo discurso, talvez pela melodia que reafirma incessantemente a potencialidade do espírito. No livro, uma menina de 11 anos, acossada pela morte da irmã gêmea, divaga sobre vida e morte, sobre existir, sobre as relações, sobre a natureza, sobre corpo e alma, sobre o amor, sobre tudo, e, sobretudo, dá ao escritor a oportunidade de expandir-se nesse que me parece seu texto mais belo e profundo. “Imaginei um lustre de mil lâmpadas descendo a fundo no centro das montanhas dos fiordes. Um lustre de mil lâmpadas que mostrasse a beleza, para que os mortos não se equivocassem nunca. Para que não se esquecessem nunca da beleza de a morte ser uma dimensão de deus. A morte é uma dimensão de deus. Deve ser magnífica”. Como eu disse, tenho lido várias coisas de Valter Hugo Mãe, mas escolhi escrever sobre essa obra porque ela me fez compreender que a linguagem é verdadeiramente luminosa quando consegue emprestar à literatura tal sentido de completude e eternidade. Um livro magnífico.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A lebre com olhos de âmbar - Edmund de Waal


Edmund de Waal é um ceramista inglês. Eu não conhecia o trabalho dele. Procurando na Internet, descobri obras em porcelana muito elegantes e despojadas, minimalistas, bem próximas do que o senso comum nos habituou a associar não apenas a uma estética japonesa, mas a um modo zen de olhar a vida. Não entendo muito disso. Talvez seja só senso comum mesmo. Acontece que De Waal é um sujeito que, lá pelas tantas, recebeu, como herança de família, uma coleção com 264 netsuquês, esculturinhas de cerca de 5 cm, esculpidas em madeira ou marfim, objetos que os japoneses usavam como enfeite e que também serviam para prender uma pequena bolsa à faixa do quimono. Voltei à Internet: são pecinhas lindas, muito vívidas, dá vontade de passar a mão nelas, de tê-las em casa. E De Waal se apaixonou por aquelas coisinhas. E se apaixonou tanto que se dispôs a refazer o caminho da coleção, a retraçar a trajetória dos netsuquês – esses objetinhos desconcertantes – desde o momento em que começam a fazer parte de sua família. “Quero saber o que este objeto testemunhou” – diz.

Li vários textos comparando o livro que Edmund de Waal escreveu para relatar sua aventura – A lebre com olhos de âmbar – com Proust. A escrita não é a de Proust – anacronismo que eu também acho que não faria nenhum sentido. Mas o movimento é. Porque a partir da experiência sensorial com os netsuquês – como acontece com as madeleines, no Em busca do Tempo Perdido – De Waal nos conta toda a história de sua família, refazendo, como Proust, um exercício de “entrelaçar sensual, sinuoso, das coisas com as lembranças”. Ele cogita: “Deve haver algures uma literatura sobre o tato, creio; alguém há de ter registrado em diário ou cartas o momento fugaz em que sentiram algo em suas mãos. Deve ainda haver sinal dessas mãos em algum lugar”. Seu livro consegue recriar essa relação entre a mão e o objeto de uma maneira inusitada, não falando nisso, mas acendendo vida em torno às pequenas esculturas que simplesmente jazem num recolhimento meditativo, como um vórtice de silêncio desenhado pelo homem na matéria dura.

“Sei que esses netsuquês foram comprados em Paris nos anos 1870 por um primo do meu bisavô chamado Charles Ephrussi”. Os Ephrussi são uma dinastia de banqueiros judeus. Charles Ephrussi foi um colecionador de arte riquíssimo, que aparece em quadros de pintores impressionistas, de quem era amigo, e que teria sido um dos modelos de Proust para o Swann da Recherche – sim, os dois se conheciam. A família de De Waal é muito interessante. Estar aí com Charles nos dá a oportunidade de observar de perto a chegada da onda do japonismo à França, movimento crucial no desenvolvimento da pintura impressionista. E faz com que a história comece como um conto de fadas movido pelo dinheiro que dá acesso à arte, à poesia, à música e a uma vida de coisas belas. Mas os netsuquês viajam. Vão parar em Viena. Os nazistas invadem a Áustria.

“Os objetos agora serão manipulados com cuidado. Cada castiçal de prata será pesado. Cada garfo ou colher contabilizado. Cada vitrine, aberta. As marcas na base de cada peça de porcelana são anotadas. Um erudito ponto de interrogação é aposto à descrição de um desenho atribuído a um Velho Mestre; as dimensões de um quadro serão recalculadas e corretamente tomadas. E enquanto tudo isso ocorre, seus donos anteriores têm as costelas quebradas e os dentes esmurrados. Os judeus têm menos importância que as coisas que um dia possuíram”.


Foi particularmente significativo, para mim, ter lido esse livro no mesmo mês em que vi Francofonia, o novo filme de Alexandr Sokurov que problematiza justamente o episódio do Louvre ameaçado pelos nazistas durante a Segunda Guerra. Acho complicado pensar nessa relação que se estabelece entre arte e civilização em tempos de guerra. Os estados assassinam milhões de pessoas, mas param e se curvam diante da Mona Lisa, prestam reverência ao objeto que encarna um marco de humanismo e civilidade. Tinha isso em mente ao sair da sessão de Francofonia. Tenho isso em mente ao concluir o livro de De Waal. Objetos alçados à condição de totem são signo de sensibilidade ao mesmo tempo em que podem desnudar uma profunda indiferença em relação ao destino humano. E isso dá o que pensar – dá mesmo.

sábado, 13 de agosto de 2016

O sol é para todos - Harper Lee


Durante muitos anos Harper Lee foi a clássica escritora de um único clássico, aquela figura que escreve um livro de grande expressão e repercussão e a seguir deixa de publicar, retirando-se do mundo da literatura. O sol é para todos, que denuncia um caso de racismo ocorrido no sul dos Estados Unidos na época da depressão, ganhou o Pulitzer de 1961 e se transformou numa espécie de sucesso instantâneo. Sua sequência – Vá, coloque um vigia – só viria a público em 2015. E eu queria ler O sol é para todos há muito tempo, mas... O tempo é uma coisa que nunca está do lado dos leitores. Por outro lado, fiquei pensando que nossa experiência de vida nesse momento meio ingrato em que uma onda conservadora se abate sobre o planeta talvez torne esta uma leitura mais produtiva do que seria normalmente.

A história é contada do ponto de vista de uma menina que cresce numa cidadezinha dos Estados Unidos à sombra da imagem do pai – Atticus Finch –, o paradigma da voz da razão num mundo bem difícil, um advogado justo, uma pessoa cheia de valores nobres por quem ela sente uma imensa admiração. E o livro se divide em duas partes. Na primeira, Scout – a menina – nos pinta um retrato do lugarejo e de seus habitantes. “No calor, as pessoas se movimentavam devagar. Andavam pela praça com esforço, entravam e saíam das lojas se arrastando, demoravam para fazer qualquer coisa. Os dias tinham vinte e quatro horas, mas davam a impressão de durar mais. Ninguém tinha pressa, pois não havia aonde ir, nada que comprar nem dinheiro para tal, nem nada para ver nos arredores de Maycomb”. É a melhor parte do romance, aquela em que a escrita de Lee parece estar mais à vontade. Para quem, como eu, cresceu numa cidade do interior, a autora descreve um universo bem familiar, que por um lado é divertido em seus preconceitos quase caricaturais, sua resistência à mudança, na persona petrificada de alguns tipos que são bem próprios desse ambiente. Por outro, ela também consegue apontar para o potencial de violência e crueldade que pulsa sob uma superfície de ignorância, religiosidade pragmática e insensibilidade perante quem destoa da norma.


É na segunda parte que explode esse mecanismo cheio de contradições, quando Finch é designado para defender no tribunal um negro acusado de estuprar uma mulher branca. Acossado pela comunidade, ele atravessa seu dever com o brio dos éticos. E a escrita de Lee perde um pouco o brilho, a meu ver. Tive a impressão de que a trama demora um pouco a definir o tom certo, correndo um sério risco, em alguns pontos, de resvalar para o melodrama. Lá pelas tantas o texto se encontra, mas me parece que o livro é até mais interessante pelo que há de periférico nele do que por sua narrativa central, talvez porque já tenhamos acompanhado muitas histórias como essa (ainda que saibamos que jamais é o bastante), tanto na literatura como no cinema (O sol é para todos foi adaptado já em 1962). Ele é bom em desnudar a mesquinharia das pessoas de bem, o clima de dano iminente que circula ao redor dessa autoestima implacável dos respeitáveis que os torna incapazes de autocrítica. No desfecho, porém, paira a sensação de que existem gradações na semelhança e que mesmo os justos são mais justos com seus mais iguais. Nesse sentido talvez o tiro saia pela culatra, seja mais revelador do que deveria. “Cheguei à conclusão” – termina Scout – “de que as pessoas eram estranhas. Por isso, mantinha distância e só pensava nelas quando era obrigada”. Pois é.