Espanha, década de 80. Nos primeiros anos de euforia após a
ditadura franquista, Juan de Vere, bastante jovem, consegue sua primeira
oportunidade de trabalho, como secretário de um importante cineasta, Eduardo
Muriel. O encargo coloca De Vere dentro da casa e convivendo com a família de
Muriel, o que o leva a presenciar o relacionamento abusivo do patrão com a
esposa, alvo dos constantes insultos do marido, de suas “injúrias cruas”, de
seu “humor ultrajante”. É o que começa a causar uma certa inquietação em Juan.
Ao mesmo tempo, Eduardo, lá pelas tantas, menciona vagamente comentários
maldosos indicando suspeitas que pairariam quanto ao comportamento de um dos
amigos do casal, o médico Jorge Van Vechten, indicando que este teria culpas a
acertar com seu passado de simpatizante da ditadura. Muriel pede a Juan que
investigue Van Vechten. Juan, incumbido de espionar Van Vechten, termina
espreitando o universo de dor, dano e rancores que constitui o casamento de
Eduardo e Beatriz.
O romance de Javier Marías estabelece um vínculo entre os
segredos e rumores que circulam dentro o relacionamento de Muriel e os
mistérios que restam em relação aos malefícios causados pela ditadura. A
exemplo do que aconteceu aqui mesmo, no Brasil, começa-se por estabelecer um
pacto que permita à vida do país seguir seu caminho e acaba-se num estado de
coisas em que já não se tem mais como aceder à verdade. A frase “assim começa o
mal”, inclusive, é parte de um verso retirado de Hamlet, de Shakespeare, ele
mesmo um personagem acossado pelo rumor, pela sede de vingança, por uma busca
de justiça que descamba em tragédia. E Marías nos confronta com a justiça
privada sobre a qual incide a esfera da justiça pública, provocando um jogo de
equívocos e opacidades.
Há paralelos com Shakespeare, mas o autor também faz
inúmeras alusões ao mundo do cinema no qual evolui Eduardo Muriel. Ele diz: “A
gente só deve se ocupar do que viu”. Ou: “Na realidade, tudo o que se conta, tudo
aquilo a que não se assiste é só rumor, por mais que seja envolto em juras de
autenticidade”. Ou seja: o cinema, o que se assiste, seria uma instância de
autenticidade, mas é importante ressaltar que o cineasta em questão, vítima de
um acidente na infância, só possui um olho. De Vere alude a “sua visão
dividida”, a “o olho vivo e marítimo e o tapa-olho morto e magnético”.
Homem de uma certa idade, Juan de Vere analisa sua
existência em retrospecto e recorda a experiência junto a Eduardo e Beatriz,
vivida na juventude. Os dolorosos e dramáticos acontecimentos que vai nos
desvelando servem também para que ele e nós reflitamos sobre o quanto as opções
dos indivíduos que desempenham os grandes papéis nos acontecimentos históricos
acabam lançando estilhaços em nossas atuações de coadjuvantes dispersos. Ao fim
do livro, nem tudo nos é explicado. As reverberações do rumor nos perseguem
além das últimas páginas. Percebemos que o rumor, que em seu início é só um
sussurro, transforma-se numa vaga que derruba tudo, numa ressonância que é
fonte de desequilíbrio e reverberações e elas distorcem de um modo sem volta as
nossas imagens das coisas. O rumor priva-nos de nosso direito a uma visão
plena. E assim começa o mal.