“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

segunda-feira, 21 de março de 2016

Assim começa o mal - Javier Marías


Espanha, década de 80. Nos primeiros anos de euforia após a ditadura franquista, Juan de Vere, bastante jovem, consegue sua primeira oportunidade de trabalho, como secretário de um importante cineasta, Eduardo Muriel. O encargo coloca De Vere dentro da casa e convivendo com a família de Muriel, o que o leva a presenciar o relacionamento abusivo do patrão com a esposa, alvo dos constantes insultos do marido, de suas “injúrias cruas”, de seu “humor ultrajante”. É o que começa a causar uma certa inquietação em Juan. Ao mesmo tempo, Eduardo, lá pelas tantas, menciona vagamente comentários maldosos indicando suspeitas que pairariam quanto ao comportamento de um dos amigos do casal, o médico Jorge Van Vechten, indicando que este teria culpas a acertar com seu passado de simpatizante da ditadura. Muriel pede a Juan que investigue Van Vechten. Juan, incumbido de espionar Van Vechten, termina espreitando o universo de dor, dano e rancores que constitui o casamento de Eduardo e Beatriz.

O romance de Javier Marías estabelece um vínculo entre os segredos e rumores que circulam dentro o relacionamento de Muriel e os mistérios que restam em relação aos malefícios causados pela ditadura. A exemplo do que aconteceu aqui mesmo, no Brasil, começa-se por estabelecer um pacto que permita à vida do país seguir seu caminho e acaba-se num estado de coisas em que já não se tem mais como aceder à verdade. A frase “assim começa o mal”, inclusive, é parte de um verso retirado de Hamlet, de Shakespeare, ele mesmo um personagem acossado pelo rumor, pela sede de vingança, por uma busca de justiça que descamba em tragédia. E Marías nos confronta com a justiça privada sobre a qual incide a esfera da justiça pública, provocando um jogo de equívocos e opacidades.

Há paralelos com Shakespeare, mas o autor também faz inúmeras alusões ao mundo do cinema no qual evolui Eduardo Muriel. Ele diz: “A gente só deve se ocupar do que viu”. Ou: “Na realidade, tudo o que se conta, tudo aquilo a que não se assiste é só rumor, por mais que seja envolto em juras de autenticidade”. Ou seja: o cinema, o que se assiste, seria uma instância de autenticidade, mas é importante ressaltar que o cineasta em questão, vítima de um acidente na infância, só possui um olho. De Vere alude a “sua visão dividida”, a “o olho vivo e marítimo e o tapa-olho morto e magnético”.

Homem de uma certa idade, Juan de Vere analisa sua existência em retrospecto e recorda a experiência junto a Eduardo e Beatriz, vivida na juventude. Os dolorosos e dramáticos acontecimentos que vai nos desvelando servem também para que ele e nós reflitamos sobre o quanto as opções dos indivíduos que desempenham os grandes papéis nos acontecimentos históricos acabam lançando estilhaços em nossas atuações de coadjuvantes dispersos. Ao fim do livro, nem tudo nos é explicado. As reverberações do rumor nos perseguem além das últimas páginas. Percebemos que o rumor, que em seu início é só um sussurro, transforma-se numa vaga que derruba tudo, numa ressonância que é fonte de desequilíbrio e reverberações e elas distorcem de um modo sem volta as nossas imagens das coisas. O rumor priva-nos de nosso direito a uma visão plena. E assim começa o mal.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Tirza - Arnon Grunberg


Acho que a sensação que primeiramente tomou conta de mim, ao percorrer as páginas iniciais de Tirza, do holandês Arnon Grunberg, foi a de desconcerto, um desconcerto muito parecido com aquele a que me remetem os livros de J.M. Coetzee. Embora os personagens e as situações sejam absolutamente verossímeis, não consigo compreender as atitudes das pessoas e fico me perguntando, o tempo todo: Mas por que esse sujeito está fazendo isso? Por que ele age desse modo? E é assim que Tirza começa, pendendo um pouco para o ridículo enquanto nos apresenta uma família de classe média, mais ou menos banal, cheia de problemas mais ou menos triviais, e seu patriarca, Jörgen Hofmeester, um ex-editor sem sucesso na profissão, que foi abandonado pela mulher e cria sozinho duas filhas.

Só que lentamente as coisas vão evoluindo no livro de Grunberg. Pequenos fatos vão emergindo aqui e ali, pontas de iceberg, informações que meio que irrompem do nada. À medida em que novos dados vão dando uma consistência bem bizarra à personalidade de Hofmeester e ao cotidiano de sua família, o leitor se vê jogado num ambiente de tensão constante, em que se pressente que algo terrível pode (e vai) acontecer a qualquer momento. De modo implacável (às vezes, durante a leitura, eu sentia meu estômago embrulhar), Grunberg despedaça seu protagonista sem dó nem piedade diante de nossos olhos, num exercício em que comédia e tragédia se atravessam, expondo um Hofmeester afogado num pântano de contradições, numa vida e num tempo que o esmagam.

Há muita coisa sendo discutida neste livro. Há a questão de gênero, circunscrita nas palavras que apontam para o personagem em sua relação com a mulher e as filhas: o “capataz”, o “guardião”. Há o homem engolfado pelas contingências políticas e econômicas de um mundo que muda muito depressa. Há as próprias alterações nos costumes, fazendo Hofmeester vagar atarantado entre a casa e o jardim enquanto tenta inutilmente explicar-se o universo dos jovens, da esposa, do trabalho, da escola, dele mesmo, de todos os que o cercam. Mas o que me parece mais interessante é a forma como o tema da liberdade parece estar sempre despontando de forma periférica. Há referências a ela ao longo de todo o texto: “Pois liberdade e fome eram inimigas mútuas”, “Em sua imitação dele, em seu exagero às vezes grotesco, estava sua liberdade”, “A liberdade que de repente lhe era concedida parecia um deserto”. No entanto, os personagens não discutem a liberdade diretamente e mostram-se alheios às questões vitais que parecem encurralá-los: O que é a liberdade? Onde se encontra? Como alcançá-la? O que fazer com ela? Para que serve ser livre?  Ninguém se aprofunda no que parece ser aquilo por que todos se debatem, de uma forma ou de outra. E Hofmeester, que tem a vida toda sob controle, de repente descobre que pode levar uma rasteira da liberdade: “[...] ali ele sentia o verdadeiro gosto da liberdade: bílis”.

Tirza é um livro intenso, para ser lido quase com o corpo (eu o li cheia de inquietude, agitada, profundamente incomodada). E eu acho que não saber muito sobre sua trama ajuda a tornar ainda mais memorável esta experiência de leitura. Sem dúvida alguma, um dos melhores romances que eu li nos últimos tempos. Mesmo.