“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

sábado, 16 de abril de 2016

Vida e destino - Vassili Grossman


Conta a lenda que a grande fonte de inspiração para a escrita de Vida e Destino, de Vassili Grossman, foi Guerra e Paz, de Leon Tolstói. Assim como Tolstói convoca a trajetória de duas famílias russas para compor um épico que atravessa as guerras napoleônicas, Grossman também o faz, mas para pintar um quadro da Segunda Guerra Mundial. E sempre que este tema surge alguém exclama que já se escreveu muito sobre a Segunda Guerra, que já se escreveu tanto sobre a Segunda Guerra... Bom, eu continuo achando necessário ler sobre os horrores da Segunda Guerra, porque acredito – acho que foi Tankred Dorst quem escreveu isso – que “a perdição do homem é o esquecimento” e que esquecemos rápido demais. E o livro de Grossman, ainda que tão grandioso (em todos os sentidos, porque são quase mil páginas) quanto o de Tolstói, é mais doído, exatamente porque expressa uma experiência mais dilacerante.

Eu gosto do modo como o romance consegue transpor essa questão do dilaceramento para sua própria estrutura. É no fato, aliás, de ser tão fragmentário que repousa exatamente sua força. A trama vai se desenrolando por uma infinidade de painéis e, acompanhando o movimento, o ponto de vista desliza o tempo todo entre os inúmeros personagens: a mãe que perde o filho na frente de batalha, o cientista acossado pelas dúvidas, o ativista fundador do Partido Comunista, o oficial nazista, o judeu a caminho da câmara de gás... É um expediente que não tem nada de novo, mas que aqui funciona muito bem para demonstrar a complexidade do humano acuado em meio ao Apocalipse. É o que permite também que, lá pelas tantas, o texto de Vassili Grossman nos fale de dentro mesmo da câmara de gás, no último instante, numa passagem capaz de estropiar qualquer coração, por mais empedernido que seja.

Vida e Destino coloca em paralelo os totalitarismos nazista e comunista. Parecem tão semelhantes, alinhados ao fundo deste universo em chamas... Resta um único derrotado, no fim das contas:

“O fascismo e o ser humano não têm como coexistir. Quando o fascismo triunfa, o ser humano para de existir, restando apenas criaturas de aspecto humano que sofreram modificações internas. Mas quando triunfa o ser humano, dotado de liberdade, discernimento e bondade, o fascismo perece, e os que haviam sido subjugados voltam a ser gente”.

Mas o ser humano não é derrotado apenas pela opressão da máquina estatal. O próprio exercício de sobrevivência sob um estado em que todos existem na ponta da faca é uma derrota cotidiana:

“Não será o juiz celestial, imaculado e misericordioso, nem o sábio juiz supremo do Estado, orientado em prol do Estado e da sociedade, nem um santo, nem um justo, não serão eles a pronunciar o veredito, mas sim um homem miserável, esmagado pelo fascismo, um homem imundo e pecador que experimentou o poder horrendo do Estado totalitário e que caiu, se inclinou, intimidou-se e se submeteu.

Ele dirá:

- Sim, existem culpados neste mundo terrível! Eu também sou culpado!”

São muitos os livros escritos sobre os dramas da Segunda Guerra Mundial, mas, quando um livro consegue recolocar a pungência de suas reflexões como pertinentes às situações de todos os tempos, ele continua sendo profundamente necessário.