Conta a lenda que a grande fonte de inspiração para a
escrita de Vida e Destino, de Vassili Grossman, foi Guerra e Paz, de Leon
Tolstói. Assim como Tolstói convoca a trajetória de duas famílias russas para
compor um épico que atravessa as guerras napoleônicas, Grossman também o faz,
mas para pintar um quadro da Segunda Guerra Mundial. E sempre que este tema
surge alguém exclama que já se escreveu muito sobre a Segunda Guerra, que já se
escreveu tanto sobre a Segunda Guerra... Bom, eu continuo achando necessário
ler sobre os horrores da Segunda Guerra, porque acredito – acho que foi Tankred
Dorst quem escreveu isso – que “a perdição do homem é o esquecimento” e que
esquecemos rápido demais. E o livro de Grossman, ainda que tão grandioso (em
todos os sentidos, porque são quase mil páginas) quanto o de Tolstói, é mais
doído, exatamente porque expressa uma experiência mais dilacerante.
Eu gosto do modo como o romance consegue transpor essa
questão do dilaceramento para sua própria estrutura. É no fato, aliás, de ser
tão fragmentário que repousa exatamente sua força. A trama vai se desenrolando por
uma infinidade de painéis e, acompanhando o movimento, o ponto de vista desliza
o tempo todo entre os inúmeros personagens: a mãe que perde o filho na frente
de batalha, o cientista acossado pelas dúvidas, o ativista fundador do Partido
Comunista, o oficial nazista, o judeu a caminho da câmara de gás... É um
expediente que não tem nada de novo, mas que aqui funciona muito bem para
demonstrar a complexidade do humano acuado em meio ao Apocalipse. É o que
permite também que, lá pelas tantas, o texto de Vassili Grossman nos fale de
dentro mesmo da câmara de gás, no último instante, numa passagem capaz de
estropiar qualquer coração, por mais empedernido que seja.
Vida e Destino coloca em paralelo os totalitarismos nazista
e comunista. Parecem tão semelhantes, alinhados ao fundo deste universo em
chamas... Resta um único derrotado, no fim das contas:
“O fascismo e o ser humano não têm como coexistir. Quando o
fascismo triunfa, o ser humano para de existir, restando apenas criaturas de
aspecto humano que sofreram modificações internas. Mas quando triunfa o ser
humano, dotado de liberdade, discernimento e bondade, o fascismo perece, e os
que haviam sido subjugados voltam a ser gente”.
Mas o ser humano não é derrotado apenas pela opressão da
máquina estatal. O próprio exercício de sobrevivência sob um estado em que
todos existem na ponta da faca é uma derrota cotidiana:
“Não será o juiz celestial, imaculado e misericordioso, nem
o sábio juiz supremo do Estado, orientado em prol do Estado e da sociedade, nem
um santo, nem um justo, não serão eles a pronunciar o veredito, mas sim um
homem miserável, esmagado pelo fascismo, um homem imundo e pecador que
experimentou o poder horrendo do Estado totalitário e que caiu, se inclinou,
intimidou-se e se submeteu.
Ele dirá:
- Sim, existem culpados neste mundo terrível! Eu também sou
culpado!”
São muitos os livros escritos sobre os dramas da Segunda
Guerra Mundial, mas, quando um livro consegue recolocar a pungência de suas
reflexões como pertinentes às situações de todos os tempos, ele continua sendo
profundamente necessário.