“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

sábado, 21 de maio de 2016

Reprodução - Bernardo Carvalho


2 de janeiro de 2016. Chovia uma barbaridade em São Paulo. Nesse dia, M. (minha namorada, minha partner nesse vale de lágrimas) comprou para mim, na 25 de Março, um tênis Converse por trinta reais, enquanto meu outro tênis Converse (All Star, lona...) se desfazia em meio ao aguaceiro. Em Reprodução, Bernardo Carvalho chama a 25 de Março paulista – uma famosa avenida de sacoleiros, camelôs e venda de bugigangas a quilo – de “a Chinatown brasileira”. E é. É uma rua de excessos. E o excesso aqui interessa, porque provavelmente seja ele o personagem principal de Reprodução. Carvalho estabelece uma espécie de analogia entre a inchada 25 de Março e a China de milhões de chineses. A China é abarrotamento de gente mas também é estado total, excessivo. E a língua chinesa... O personagem principal do livro estuda chinês há seis anos e ainda não consegue se expressar no idioma – uma língua excessiva. Mas vamos por partes...

O estudante de chinês, numa fila do aeroporto, prestes a embarcar para a China, encontra sua professora de chinês, que sumiu há um bom tempo. Algo estranho acontece e ele se vê envolvido num incidente, acaba detido pela polícia. Aí o estudante de chinês tenta se explicar. E fala. Fala. Fala. Ele fala com alguém, provavelmente com o delegado, mas não ouvimos seu interlocutor, só a verborragia derramada do estudante de chinês. Quando o estudante de chinês cala, uma outra voz se solta, que também não é a do delegado, mas de uma outra pessoa, uma mulher, na outra sala, e aí o estudante de chinês ouve a voz que atravessa a parede fina. E ela fala. Fala. Fala. Unilateralmente. Se a China é o estado total, há também aí outras instâncias totais, de poder que se espraia, excessivo: a polícia, que impede o embarque do estudante de chinês, e a religião, que surge do nada, atravessando o discurso da mulher na sala ao lado.

Bernardo Carvalho estabelece um jogo interessante entre reprodução biológica (“O homem é o único animal que tem consciência de que sua reprodução é um suicídio e mesmo assim continua a se reproduzir, não pode parar. Só resta rezar contra o irresponsável que mandou o homem crescer e se multiplicar. Ou jogar uma bomba na cabeça dos chineses”.) e reprodutibilidade – repetição, imitação, duplicação – para fotografar um universo de vazio sufocante em que o vácuo pesa como uma montanha. A religião emula esse aspecto do nada que é um tudo onde não se respira: ela deveria ser um agente do etéreo, do espiritual, mas acaba operando, no romance, como uma Máfia, uma máquina de industrialização da palavra vazia que então se reproduz como realidade concreta. “Estou repetindo pra tentar visualizar. Aprendi na igreja. Você vê qualquer coisa se começar a repetir. Vê e acredita”.


Carvalho escreveu meu livro preferido entre a literatura brasileira de fatura mais recente – Nove Noites. Desde então procuro acompanhar seu trabalho, nem sempre concordando com a crítica a respeito dele. Não gosto tanto, por exemplo, do incensado Mongólia. Nove Noites, para mim, continua sendo seu livro importante. Mas gostei de Reprodução, que eu vejo como uma espécie de livro-conceito: mais do que narrar uma história, ele se detém em expressar uma ideia sobre como anda esse nosso difícil mundo. E eu acho que faz isso bem. Encerro com ele: “Não é melhor acreditar e pertencer? Quem vai ligar pro que eu penso ou você, sozinhos? Pense bem. Quem vai ligar daqui a dez, vinte anos, quando o país inteiro for só um amontoado de igrejas, disputando espaço a tapa umas com as outras? Daqui a vinte anos, é possível que o que a gente pensa nem seja mais pensamento. Então, não é melhor parar de pensar logo e começar a orar para que os psicotrópicos – não é assim que você diz? – continuem fazendo efeito?”

sábado, 14 de maio de 2016

F. - Antônio Xerxenesky


A Editora Rocco publicou F., de Antônio Xerxenesky, em 2014. A história do livro, porém, acontece nos gloriosos anos 80, a década em que o Brasil deu adeus à ditadura, um período de novos tempos, pelo rock, pelo surgimento dos computadores, pelo nascimento do CD. Esperava-se muito do futuro nos anos 80 e, em primeiro lugar, parece ser com a ideia de esperança e desesperança que Xerxenesky está trabalhando em seu livro. A protagonista, Ana, é uma assassina tentando elaborar a memória de um pai também assassino (“ele me contou que meu pai era conhecido pela simpática alcunha de Doutor Eletrochoque e que o seu incrível talento para a engenharia era utilizado para modificar aparelhos e desenvolver sistemas aprimorados de tortura”). As mortes cometidas pela própria Ana, porém, têm pouco do horror ligado aos dramas da tortura: são gráficas e cinematográficas, um tanto cômicas, um pouco exóticas. Ana é uma deturpação, uma falsificação do pai assassino, o que é engraçado e também melancólico, porque Ana é uma ficção que a gente não consegue esquecer, em nenhum momento, que é ficção – e me parece que é essa mesmo a intenção do romance.

Lá pelas tantas, a matadora Ana é contratada para assassinar – pasmem – Orson Welles. E é quando se escancara a grande brincadeira do livro, quando o texto começa a jogar com um filme de Welles, de 1973, chamado “F for Fake”. Eu revi F for Fake há pouco, para acompanhar um trabalho de aula, e ele exatamente levanta uma série de questões a respeito de originalidade/falsificação. Xerxenesky faz com que se atravessem a vida de Ana e os filmes de Welles, a tarefa de Ana e as motivações de Welles, numa evocação dos atravessamentos entre alta e baixa cultura que são outro dos motes do romance. Afinal, Ana é uma assassina que metodicamente cita versos de Drummmond para se acalmar antes de puxar o gatilho.


A articulação F./F for Fake funciona bem: prende a atenção do leitor, curioso para saber de que jeito será desatado esse nó entre realidade e ficção. A falsidade do personagem Ana também funciona bem: Ana é uma estranha metáfora de si mesma e do próprio livro. O que não funciona bem, o que parece desandar é o rumo que a narrativa toma na terceira parte. Quando Xerxenesky desvia o foco do F de ficção e centra suas luzes no F de futuro (encontrei um vídeo no Youtube em que ele diz que o F do título aponta também para estes dois temas) o texto perde o ritmo, perde o interesse. Certamente, a ideia era mesmo a de produzir uma história inconclusiva, mas o inconclusivo aí frustra o leitor. Ana diz, sobre F for Fake: “Orson revela que a parte final de seu documentário é toda composta de mentiras”. Já o F. de Antônio Xerxenesky parece resvalar, bem em sua parte final, para o lado das verdades, o que dá uma enorme sensação de desamparo, parece que a trama dá uma volta sobre si mesma e acaba traindo as próprias intenções. Mas talvez eu pense isso apenas porque sou uma pessoa que acredita firmemente nas ficções. Ana comenta: “Assisti a Cidadão Kane e isso não me salvou”. Como assim?! Bem, eis aí alguém que é muito diferente de mim – com certeza.