2 de janeiro de 2016. Chovia uma barbaridade em São Paulo.
Nesse dia, M. (minha namorada, minha partner nesse vale de lágrimas) comprou para mim, na 25 de Março, um tênis
Converse por trinta reais, enquanto meu outro tênis Converse (All Star,
lona...) se desfazia em meio ao aguaceiro. Em Reprodução, Bernardo Carvalho
chama a 25 de Março paulista – uma famosa avenida de sacoleiros, camelôs e
venda de bugigangas a quilo – de “a Chinatown brasileira”. E é. É uma rua de
excessos. E o excesso aqui interessa, porque provavelmente seja ele o
personagem principal de Reprodução. Carvalho estabelece uma espécie de analogia
entre a inchada 25 de Março e a China de milhões de chineses. A China é
abarrotamento de gente mas também é estado total, excessivo. E a língua
chinesa... O personagem principal do livro estuda chinês há seis anos e ainda
não consegue se expressar no idioma – uma língua excessiva. Mas vamos por
partes...
O estudante de chinês, numa fila do aeroporto, prestes a
embarcar para a China, encontra sua professora de chinês, que sumiu há um bom
tempo. Algo estranho acontece e ele se vê envolvido num incidente, acaba detido
pela polícia. Aí o estudante de chinês tenta se explicar. E fala. Fala. Fala.
Ele fala com alguém, provavelmente com o delegado, mas não ouvimos seu
interlocutor, só a verborragia derramada do estudante de chinês. Quando o
estudante de chinês cala, uma outra voz se solta, que também não é a do
delegado, mas de uma outra pessoa, uma mulher, na outra sala, e aí o estudante de
chinês ouve a voz que atravessa a parede fina. E ela fala. Fala. Fala.
Unilateralmente. Se a China é o estado total, há também aí outras instâncias
totais, de poder que se espraia, excessivo: a polícia, que impede o embarque do
estudante de chinês, e a religião, que surge do nada, atravessando o discurso
da mulher na sala ao lado.
Bernardo Carvalho estabelece um jogo interessante entre
reprodução biológica (“O homem é o único animal que tem consciência de que sua
reprodução é um suicídio e mesmo assim continua a se reproduzir, não pode
parar. Só resta rezar contra o irresponsável que mandou o homem crescer e se
multiplicar. Ou jogar uma bomba na cabeça dos chineses”.) e reprodutibilidade –
repetição, imitação, duplicação – para fotografar um universo de vazio
sufocante em que o vácuo pesa como uma montanha. A religião emula esse aspecto
do nada que é um tudo onde não se respira: ela deveria ser um agente do etéreo,
do espiritual, mas acaba operando, no romance, como uma Máfia, uma máquina de
industrialização da palavra vazia que então se reproduz como realidade
concreta. “Estou repetindo pra tentar visualizar. Aprendi na igreja. Você vê
qualquer coisa se começar a repetir. Vê e acredita”.
Carvalho escreveu meu livro preferido entre a literatura
brasileira de fatura mais recente – Nove Noites. Desde então procuro acompanhar
seu trabalho, nem sempre concordando com a crítica a respeito dele. Não gosto
tanto, por exemplo, do incensado Mongólia. Nove Noites, para mim, continua
sendo seu livro importante. Mas gostei de Reprodução, que eu vejo como uma
espécie de livro-conceito: mais do que narrar uma história, ele se detém em
expressar uma ideia sobre como anda esse nosso difícil mundo. E eu acho que faz
isso bem. Encerro com ele: “Não é melhor acreditar e pertencer? Quem vai ligar
pro que eu penso ou você, sozinhos? Pense bem. Quem vai ligar daqui a dez,
vinte anos, quando o país inteiro for só um amontoado de igrejas, disputando
espaço a tapa umas com as outras? Daqui a vinte anos, é possível que o que a
gente pensa nem seja mais pensamento. Então, não é melhor parar de pensar logo
e começar a orar para que os psicotrópicos – não é assim que você diz? –
continuem fazendo efeito?”