Outro dia, eu e M. almoçamos num restaurante aqui de Porto
Alegre onde antes funcionava um cinema (pelo menos não virou igreja). E
conversávamos sobre os tantos filmes que já tínhamos visto naquele lugar.
(“Lembra daquele filme terrível do Pasolini?” Salò. Eu não aguentei e saí no
meio da exibição. Fiquei esperando por ela na calçada em frente ao cinema.) Aí
uma garota, sentada na mesa ao lado, entrou no papo, contando que ela e alguns
colegas da faculdade tinham criado um grupo para debater sobre os filmes e nos
convidou para participar. Falo isso porque eu acho que o cinema é uma prática
que funda espécies de seitas iniciáticas de níveis diversos que acabam
definindo e aproximando as pessoas. Acho, por exemplo, que o cinema, para mim,
é uma prática muito mais definidora que a leitura. A diferença é que o cinema
está mais no mundo. Se eu não escrever um blog sobre livros, me sinto ilhada na
minha paixão. E acho que esse trânsito de afinidades, esse compartilhamento também
acontece com o esporte. Pensei num livro lançado aqui no ano passado, de David
Foster Wallace, chamado Graça Infinita, cujo núcleo central é formado por uma
família de tenistas, uma estirpe muito peculiar de jogadores de tênis. E,
agora, pensei que o tênis deve mesmo ser um esporte bom para mobilizar afetos,
porque aparece, de novo, no livro de Álvaro Enrique, ainda que de modo bem
diferente que em Graça Infinita.
“O brioso pintor barroco Michelangelo Merisi da Caravaggio,
muito dado ao jogo, viveu seus últimos anos no exílio por ter deixado um
adversário varado por espada numa quadra de tênis. A rua onde o crime aconteceu
até hoje se chama Via dela Pallacorda – rua da ‘bola-rede’ – em memória do
incidente”. Caravaggio foi condenado à morte por decapitação – e depois
perdoado, tarde demais – devido ao episódio. Desse pequeno trecho, porém, é
possível destacar algumas das linhas que conduzem a trama no livro de Enrique.
Como pano de fundo, temos uma partida de tênis – um duelo – travada, em 1599,
entre Caravaggio e o poeta espanhol Francisco de Quevedo. Nos intervalos em que
transcorre o jogo, é como se a bola se evadisse da quadra, levando-nos a pontos
diversos na narrativa maior do mundo. Nesses momentos, partida e existência se
entrelaçam, jogar e viver, duelar (confrontando a tensão do instante) e existir
(refletindo a distensão da eternidade). Enrique reflete: “Não sei, enquanto
escrevo este livro, sobre o que ele é. O que ele conta. Não é exatamente sobre
uma partida de tênis. Também não é um livro sobre a lenta e misteriosa
integração da América àquilo que chamamos, com obscena desorientação, ‘o mundo
ocidental’ – para os americanos, a Europa fica no Oriente. Talvez seja um livro
que trata apenas de como este livro poderia ser contado, talvez todos os livros
tratem apenas disso. Um livro com vaivéns, como um jogo de tênis”.
Há a expressão “morte súbita”, relativa a um lance do tênis,
mas que também pode ser ligada à ameaça da degola que paira sobre o pintor
italiano. E o autor se demora na descrição das degolas retratadas nos quadros
de Caravaggio. E se demora também nas considerações acerca da degola de outro
personagem histórico importante: Ana Bolena, a mulher de Henrique VIII,
informando-nos que as tranças de Ana Bolena foram usadas para confecção de
quatro bolas de tênis, a mando de seu algoz, o francês Jean Rombaud. As bolas
que enfeixam os nobres cabelos da rainha morta originam um outro movimento
atrás do qual também se lança a história, o que me fez lembrar de Submundo, de
Don DeLillo. Publicado em 1997, Submundo nos põe a correr atrás da bola
desaparecida em uma partida mítica de beisebol travada em 1951. E DeLillo
também associa as circunstâncias do jogo à pintura, evocando O triunfo da
morte, de Pieter Bruegel, para nos fazer sentir o drama de um momento único que
terá desdobramentos por seu livro inteiro.
Submundo é uma obra magnífica. Morte súbita também. Enrique
trabalha com a ideia da bola apontando para o “espírito que vai e vem entre o
bem e o mal tentando entrar no céu”. Mas vai além disso. Tive a impressão de
sentir que, entre os dois oponentes, sua simpatia pende para o lado de
Caravaggio (ou é a minha que pende, talvez). Mas o modo como fala sobre os
quadros do italiano consegue emular a própria pintura do artista, colocando-nos
no centro de uma aventura dramática plena de jogos de luz e armadilhas do
movimento, acendendo diante de nós “a fogueira da modernidade que se instala”. Como
os quadros de Caravaggio, o romance é atravessado pela violência, pela sujeira,
pela crueza da vida real. Há êxtase e asco por toda parte. “Caravaggio foi para
a pintura o que Galileu foi para a física: alguém que abriu os olhos e disse o
que estava vendo; alguém que descobriu que as formas no espaço não são
alegorias de nada além de si mesmas e isso basta; alguém que entendeu que o
verdadeiro mistério das forças que controlam nossa maneira de habitar o mundo
não reside em serem elevadas, e sim elementares”. Sua vida tem servido de tema
a livros e filmes. Em seu romance, talvez
Enrique tenha apenas nos querido alertar para o fato de que, “no
inferno, as almas e os livros são bolas. Os demônios jogam com elas”. E não são
os bons que ganham as partidas da história, infelizmente.