“Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana”.
[Seis passeios pelos bosques da ficção, Humberto Eco]

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A lebre com olhos de âmbar - Edmund de Waal


Edmund de Waal é um ceramista inglês. Eu não conhecia o trabalho dele. Procurando na Internet, descobri obras em porcelana muito elegantes e despojadas, minimalistas, bem próximas do que o senso comum nos habituou a associar não apenas a uma estética japonesa, mas a um modo zen de olhar a vida. Não entendo muito disso. Talvez seja só senso comum mesmo. Acontece que De Waal é um sujeito que, lá pelas tantas, recebeu, como herança de família, uma coleção com 264 netsuquês, esculturinhas de cerca de 5 cm, esculpidas em madeira ou marfim, objetos que os japoneses usavam como enfeite e que também serviam para prender uma pequena bolsa à faixa do quimono. Voltei à Internet: são pecinhas lindas, muito vívidas, dá vontade de passar a mão nelas, de tê-las em casa. E De Waal se apaixonou por aquelas coisinhas. E se apaixonou tanto que se dispôs a refazer o caminho da coleção, a retraçar a trajetória dos netsuquês – esses objetinhos desconcertantes – desde o momento em que começam a fazer parte de sua família. “Quero saber o que este objeto testemunhou” – diz.

Li vários textos comparando o livro que Edmund de Waal escreveu para relatar sua aventura – A lebre com olhos de âmbar – com Proust. A escrita não é a de Proust – anacronismo que eu também acho que não faria nenhum sentido. Mas o movimento é. Porque a partir da experiência sensorial com os netsuquês – como acontece com as madeleines, no Em busca do Tempo Perdido – De Waal nos conta toda a história de sua família, refazendo, como Proust, um exercício de “entrelaçar sensual, sinuoso, das coisas com as lembranças”. Ele cogita: “Deve haver algures uma literatura sobre o tato, creio; alguém há de ter registrado em diário ou cartas o momento fugaz em que sentiram algo em suas mãos. Deve ainda haver sinal dessas mãos em algum lugar”. Seu livro consegue recriar essa relação entre a mão e o objeto de uma maneira inusitada, não falando nisso, mas acendendo vida em torno às pequenas esculturas que simplesmente jazem num recolhimento meditativo, como um vórtice de silêncio desenhado pelo homem na matéria dura.

“Sei que esses netsuquês foram comprados em Paris nos anos 1870 por um primo do meu bisavô chamado Charles Ephrussi”. Os Ephrussi são uma dinastia de banqueiros judeus. Charles Ephrussi foi um colecionador de arte riquíssimo, que aparece em quadros de pintores impressionistas, de quem era amigo, e que teria sido um dos modelos de Proust para o Swann da Recherche – sim, os dois se conheciam. A família de De Waal é muito interessante. Estar aí com Charles nos dá a oportunidade de observar de perto a chegada da onda do japonismo à França, movimento crucial no desenvolvimento da pintura impressionista. E faz com que a história comece como um conto de fadas movido pelo dinheiro que dá acesso à arte, à poesia, à música e a uma vida de coisas belas. Mas os netsuquês viajam. Vão parar em Viena. Os nazistas invadem a Áustria.

“Os objetos agora serão manipulados com cuidado. Cada castiçal de prata será pesado. Cada garfo ou colher contabilizado. Cada vitrine, aberta. As marcas na base de cada peça de porcelana são anotadas. Um erudito ponto de interrogação é aposto à descrição de um desenho atribuído a um Velho Mestre; as dimensões de um quadro serão recalculadas e corretamente tomadas. E enquanto tudo isso ocorre, seus donos anteriores têm as costelas quebradas e os dentes esmurrados. Os judeus têm menos importância que as coisas que um dia possuíram”.


Foi particularmente significativo, para mim, ter lido esse livro no mesmo mês em que vi Francofonia, o novo filme de Alexandr Sokurov que problematiza justamente o episódio do Louvre ameaçado pelos nazistas durante a Segunda Guerra. Acho complicado pensar nessa relação que se estabelece entre arte e civilização em tempos de guerra. Os estados assassinam milhões de pessoas, mas param e se curvam diante da Mona Lisa, prestam reverência ao objeto que encarna um marco de humanismo e civilidade. Tinha isso em mente ao sair da sessão de Francofonia. Tenho isso em mente ao concluir o livro de De Waal. Objetos alçados à condição de totem são signo de sensibilidade ao mesmo tempo em que podem desnudar uma profunda indiferença em relação ao destino humano. E isso dá o que pensar – dá mesmo.