A história de A desumanização se passa na Islândia e só isso
já é motivo para que Valter Hugo Mãe brinque com toda uma série de nomes que
rolam sobre a língua como pequenos objetos carregados na boca: Gudlaug,
Halldora, Sigridur, Einar, Steindór, Thurid, Hilmar, Gudmundur... Diz: “O nome
do meu filho como almofada onde eu pousava a língua, a linguagem, o pensamento,
o sonho todo. Nunca haveria de o engolir”. Porque no livro a fala não aponta
para nada, mas é, em si, alguma coisa, um alguém, personagem que se liberta: “Nada
do que possamos dizer alude ao que no mundo é. Com trinta e duas letras num
alfabeto não criamos mais do que objetos equivalentes entre si, todos irmanados
na sua ilusão. As letras da palavra cavalo não galopam, nem as do fogo
bruxuleiam. E que importa como se diz cavalo ou fogo se não se autonomizam do
abecedário. Nenhuma pedra se entende por caracteres. As pedras são entidades
absolutamente autônomas às expressões. As pedras recusam a linguagem. Para a
linguagem as pedras reclamam o direito de não existir. Se as nomeamos não
estamos senão a enganarmo-nos voluntariamente. Às pedras nunca enganaremos.
Elas sabem que existem por outros motivos e talvez suspeitem que o nosso desejo
de falar seja só um modo menos desenvolvido de encarar a evidência de existir”.
Sempre que se fala em Valter Hugo Mãe surgem associações
entre a sua escrita e a de Saramago. É uma alusão que me parece pertinente, mas
nas últimas semanas encadeei uma série de leituras de livros seus e, a todo
momento, mais e mais, eu sentia algo de Raduan Nassar nos textos, e
principalmente em relação a isso que é muito presente em A desumanização: uma
espécie de natureza tátil da linguagem, uma palavra que parece ter forma e
dureza no espaço, fazendo com que a poesia da história se erga da página como
música. “Dizia que o engenho não se descasava da emoção. Como se Bach não
chorasse com o magnífico da sua obra. Bach chorava, gritava ela como doida,
Bach chorava. As cores não se inventaram pelas luzes francesas e não serviam
para reduções científicas. São relações antigas. Elas servem para grandes
aumentos interiores. Intensificações. Modos de virmos cá fora. Só assim se porá
fim a uma humanidade de sensibilidade daltônica”.
E é assim, me parece, que a palavra luta contra
a desumanização, contra a ameaça perene de um universo de “gente sem gente
dentro”: muito mais do que pelo discurso, talvez pela melodia que reafirma
incessantemente a potencialidade do espírito. No livro, uma menina de 11 anos,
acossada pela morte da irmã gêmea, divaga sobre vida e morte, sobre existir,
sobre as relações, sobre a natureza, sobre corpo e alma, sobre o amor, sobre
tudo, e, sobretudo, dá ao escritor a oportunidade de expandir-se nesse que me
parece seu texto mais belo e profundo. “Imaginei um lustre de mil lâmpadas
descendo a fundo no centro das montanhas dos fiordes. Um lustre de mil lâmpadas
que mostrasse a beleza, para que os mortos não se equivocassem nunca. Para que
não se esquecessem nunca da beleza de a morte ser uma dimensão de deus. A morte
é uma dimensão de deus. Deve ser magnífica”. Como eu disse, tenho lido várias
coisas de Valter Hugo Mãe, mas escolhi escrever sobre essa obra porque ela me
fez compreender que a linguagem é verdadeiramente luminosa quando consegue
emprestar à literatura tal sentido de completude e eternidade. Um livro
magnífico.
Poesia pura! o livro que me apresentou a escrita do Valter Hugo Mãe. Linda obra... depois de ler, nunca mais olhei para um bonsai com os mesmos olhos
ResponderExcluirAbraço!
Abraço, querida.
Excluir